quarta-feira, 26 de maio de 2010

Nué Propriété - 2006

Nué Propriété - Propriedade Privada 

Origem: Bélgica/França/Luxemburgo
Direção: Joachim Lafosse
Gênero: Drama
Elenco: Isabelle Huppert, Jérémie Renier, Yannick Renier...

Obs: Essa resenha foi escrita para um trabalho acadêmico, a extensão do texto e aprofundamento condizem com a solicitação do professor.
 
        Nué Propriété é o que podemos chamar de um pequeno grande filme. Com roteiro e direção do jovem diretor belga Joachim Lafosse, concorreu ao festival de Veneza de 2006, batendo um recorde do diretor mais novo a concorrer a tal premiação.
        O filme tem curta duração, uma produção simples, com locações, figurinos e cenários mais simples ainda, o bom do filme não está nesses aspectos e sim em seu roteiro, esse, grandioso. “Propriedade Privada” conta a história de uma mulher divorciada que vive com seus dois filhos na casa em que moram desde o nascimento. Vislumbrando uma mudança em sua vida, ela decide vender a casa para construir uma pousada. Os filhos são contra e consequentemente se viram contra a mãe, e depois, um contra o outro.
        É nesse cenário que a trama começa, dentro da casa, aonde a maioria das situações acontece. Antes de abrir a câmera para a película, o expectador lê no canto da tela a seguinte frase: “aos nossos limites”. Tanto essa frase quanto o próprio nome do filme (Propriedade Privada), definem muito bem o que vem pela frente. Apesar de não serem termos psicanalíticos, resumem com objetividade os sentimentos e as relações que existem nessa família.
        A talentosa atriz francesa Isabelle Huppert vive Pascale, mãe dos meninos. Já na primeira cena do filme podemos perceber como é o relacionamento entre eles. Ao se olhar no espelho com uma camisola nova que comprou, recebe a ironia e o sarcasmo dos comentários dos filhos. Os irmãos gêmeos são interpretados por Jérémie Renier que vive Thierry, e Yannick Renier, que vive François. O dois são irmãos também na vida real, e segundo Joachim Lafosse, isso deu uma maior identidade aos personagens. Um quarto personagem que se junta a trama, é Luc, o ex-marido de Pascale, interpretado por Patrick Descamps. Apesar de serem separados, sua prensença ainda é constante no cotidiano da família. 
        No decorrer do filme começamos a perceber quem dá “as cartas” dentro da casa. Normalmente, em uma família menos problemática (porém nunca perto da perfeição, pois, nenhuma família chega perto disso) o natural seria a mãe desenvolver esse papel, mas na família de Pascale não é assim. Thierry é quem domina todas as cenas, imaturo, arrogante, machista, mimado e egoísta, coloca medo tanto na mãe quanto no irmão, fazendo suas vontades e opiniões prevalecerem. Isso é muito bem retratado no dia-a-dia, sendo essa forma de demonstrar emoções e sentimentos ocultos de forma clara, uma das riquezas do filme.
        Um ponto forte a ser ressaltado é como os filhos são imaturos para sua idade. Gêmeos, beiram os vinte e cinco anos e apesar de toda essa idade não trabalham e passam o dia fazendo “nada”, ao acordar é Pascale que os chama para levantar, a rotina gira em torno da mãe que os serve. Em uma cena que os dois estão deitados na cama jogando vídeo-game e em outra aonde tomam banhos juntos e um lava a cabeça do outro, isso fica muito evidente. Isso se alia ao fato da intimidade entre os três personagens ser extrema. A mãe toma banho na frente do filho (que a observa ao escovar os dentes), vai ao banheiro de porta aberta, etc. Privacidade é uma palavra que não faz sentido no filme, essas atitudes mostram como os limites não são estabelecidos, também por parte de Pascale. Um entra no espaço do outro e isso faz com que as relações entrem em um emaranhado que faz os papéis se inverterem. A mãe não é quem dá as cartas, pelo contrario, ela é bastante dependente da opinião dos filhos, não tem voz ativa e sabota sua própria liberdade.
        A verdade é que a mãe não cortou o cordão umbilical com a prole, mesmo com vinte e poucos anos cada um, permanece uma relação de dependência e obrigação de cuidados que não condizem com a idade e situação dos personagens. Para aumentar a problemática, o pai não é parceiro da mãe, pelo contrário, faz o que pode para colocar os filhos contra ela por meio de dinheiro, pois afetivamente não é nem um pouco participativo. Ao perceber a imaturidade dos filhos, usa isso de chantagem para infernizar a vida de Pascale, tornando uma terceira pessoa que controla sua vida. Pascale é uma propriedade privada dos três.
        O auge dessa ebulição, acontece quando Pascale começa a namorar seu vizinho Jan. Jan, interpretado por Kris Cuppens é uma luz em sua vida. É ele que lhe mostra como sua vida está sem sentido por essa obrigação que ela sente em atender os filhos e mostra como isso é inadimissível. Sugere que ela venda a casa e construa uma pousada, o que sempre foi seu sonho mas que abriu mão pela família. Pascale gosta da idéia, mas seu relacionamento continua as escondidas, chegando até ter relações sexuais na mala do carro para os filhos não descobrirem. Essa cena é interessante, pois apesar do gênio difícil dos filhos e da situação acoada que se encontra dentro de casa, a cena mostra como ela deixou seu espaço ser invadido, como não estabeleceu os limites na criação dos garotos, se submetendo a transar com o namorado como se fosse uma clandestina. E é exatamente percebendo isso que Thierry impõe todas as suas vontades, pois sabe que a mãe é fraca, submissa, e bastante dependente, também, dos filhos. 
        Ás poucas vezes que se vê Pascale com um semblante mais relaxado, são nas cenas com o namorado, fora isso, o tempo todo, ela está com a insatisfação nos olhos. Tudo é motivo para infantiliza-la e ironizar as coisas que acontecem em sua vida, como na cena em que os irmãos fingem uma transa dela com o vizinho, comentando o fato do mesmo ter dado uma torta para ela. Jan chega na história como um grito de alerta para Pascale, encorajando-a a ser quem ela é, pois sua essência se perdeu. Uma boa cena que identifica esse processo de ruptura que ela começa a fazer, acontece quando os dois começam a brigar por uma carona e ela os deixa brigando, seguindo no carro sozinha para cidade. 
        Todo esse ambiente é ainda mais tenso por um recurso técnico utilizado. A câmera está sempre com o plano fechado, só enxergamos os personagens, e nada mais além. Isso passa um sufocamento ainda maior, pois em um ambiente tão tenso, espaço é algo sempre desejado, mas a câmera filma os diálogos somente. Não se sabe o tamanho de nenhum dos cômodos da casa, das ruas, de nada. Esse recurso passa ser uma linguagem não verbal no filme, pois além de fazer com que o expectador também fique acoado, ele é essencial para entender o desfecho da história.
        Entre a venda da casa e a revolta dos filhos, Thierry inicia a sua vida sexual, enquanto o outro não. Mais uma vez o recurso de colocar paralelamente realidades diferentes dos dois é utilizada. Depois da cena em que um transa, corta para o outro tomando yogurte enquanto a mãe passa a roupa. 
        Agora sozinhos, os irmãos começam a ter que aprender a dividir, o que, com certeza, não acontece da maneira mais calma possível. Ao ficarem sozinhos começam a ficar um contra o outro e toda essa situação termina com uma forte briga entre os dois, aonde Thierry joga François em uma mesa de vidro. François não acorda mais e desesperado Thierry liga para o pai e conta o que aconteceu, porém não permanece em casa. Como uma criança indefesa e amendrontada corre pelo jardim, ofegante, soluçando de tanto chorar e senta atrás de uma árvore, chorando encolhido, enquanto vê o pai chegando com a ambulância. Na verdade, Thierry mostra ali tudo o que sempre foi, imaturo e bobo, não encarando de frente o que aconteceu. Se esconde para não ter que ver diante de seus olhos a consequência de seus atos e assim, ele corre para a casa da namorada, tentando encontrar alguém que lhe acolha naquele momento, no qual se deu conta de quão fraco ele é.
         O final, com certeza, é a sacada máxima do filme. Pascale e Luc se encontram na sala aonde aconteceu a briga, a mesa de vidro está toda quebrada no chão. Sem dizer uma palavra os dois começam a catar os cacos de vidro juntos. Essa cena é bastante tocante, não só pela situação em si, mas também pelo violino rasgado que começa a tocar de fundo. É como se aqueles cacos de vidro representassem todas as angústias, ferimentos, mágoas que são tão presentes naquela família. Foi necessário que uma tragédia acontecesse para que a primeira cena de “tranquilidade” aparecesse. Juntar os cacos também pode ser interpretado como uma união da mãe com o pai para ajudar os filhos, vítimas e responsáveis, naquela situação.
        É nesse momento que a câmera de Lafosse se mostra poderosa. O carro que vai embora da casa de Pascale leva a câmera junto, finalmente abrindo o quadro, e o expectador se depara com uma casa enorme, com muitos cômodos, janelas, campos… É ai que o expectador também percebe o tamanho do espaço que os três tinham para ocupar dentro da casa, mas com tamanho emaranhado, ligações e relações complexas, todos ocupavam os mesmos lugares. Essa foi uma ótima forma utilizada pelo diretor para mostrar que não importa quão munido materialmente você, é no conhecimento do subjetivo, no reconhecimento de seus limites, que mora a verdadeira paz.


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